BRILHO PROFUNDO A PARTIR DE UMA LINHAGEM NEGRA

Por Andrés Ibarra

Na entrada, eu e um outro senhor (sim, já entrei nessa categoria, conforme sou tratado com maior frequência) ainda guardávamos esperança de poder entrar enquanto um rio de brasilienses adentrava o Clube do Choro para ver o show Sambabossa & Roll, da cantora Isabella Paz. Esse senhor, de acordo com o que me revelou, era do Rio e estava de passagem pela cidade. Tinha ido, na véspera, a essa mesma sala de espetáculos e visto o soprista Nailor Proveta e parceiro. Estava encantado, com a estrutura, a qualidade da música, o preço e comentou que na sua cidade não existia, nem de longe, algo assim. Parecia saber do que estava falando. Mas não teve a mesma sorte que eu, que, creio, consegui o último dos ingressos à disposição, das mãos de uma dama que foi com a minha cara e que, depois de ter entrado e saído diversas vezes – a cada hora, com novos convidados – ainda possuía um.

Como foi que quase perdi esse show? Bom, achei que, sendo o salão do Clube um senhor espaço (uns 300 lugares?) e estando a cidade vazia em função do “feriadão”, não teria a dificuldade que tive – na verdade, teve muito mais gente que ficou de fora. Mas, também, acho que subestimei a essa cantora filha da cidade, que, há pouco mais de duas décadas, lapida uma voz, um estilo, um repertório, com um trabalho musical que, além do expressivo, passa pelo pedagógico e terapêutico.

Acho que já a tinha visto cantar (mas posso estar errado) e certamente já a tinha ouvido no rádio. Poderia até dizer que a reconheceria caso a ouvisse “às cegas”; dando sempre novas flexões a clássicos da MPB, mas como se pedisse licença, ficando, aos poucos, cada vez mais à vontade nesse universo – e isso porventura também transparecia da sua voz – quase sacrossanto.

Mas eis que, desta feita, Isabella Paz, vá saber por que – as circunstâncias da vida, às quais, em dado momento, se referiu (o nascimento de sua filha, a morte do seu pai ilustre, a parceria amorosa com o guitarrista Pedro Doca) –, resolveu dar uma flexão não mais à música, mas em si mesma. Deu pra notar isso desde o momento em que pisou no palco, depois da sensacional banda que a acompanhou: óculos vermelhos, indicando que a busca é por alegria, que o universo é plástico, disponível a uma eterna renovação.

Foram poucas músicas, algo em torno de umas doze ou treze, iniciadas por um scat, ou canção balbuciada – que alguém da mesa em que eu estava chamou de “em língua do P”. Seguiram-se dois sambas de Noel e “Corcovado” de Tom. Não teve Caymmi, mas Edu Lobo (“Ponteio”); enfim, tudo de extremo bom gosto, em arranjos delicados, generosos, por parte do tecladista Renato Vasconcelos (à frente de time dos sonhos, que incluiu um naipe de metais com flauta, trompete e trombone, além de violão, baixo acústico, bateria e um cavaquinho). O que se ouviu e viu, nessa primeira metade do show, foi uma Isabella Paz absolutamente segura, tendo alcançado seu objetivo, há tanto tempo perseguido, de conversar em paz (me desculpem o trocadilho) com esse divino legado.

Porém, quando veio a segunda parte do show, tudo premeditadamente se transformou. Digo premeditadamente porque não só ela mudou de roupa (não sei se esse termo se equivale a figurino, por isso me mantenho na versão mais prosaica), mas também os músicos. Saiu o piano acústico pra ficar somente o elétrico, um sax entrou no lugar da flauta e um trio feminino de backing vocals se apresentou em linha de frente, com sorrisos e jogo corporal a dialogar diretamente com aquela presença que tinha se mantido tão elevada na primeira parte. Por último, o banco sobre o qual Isabella cantou – e que me pareceu quase protocolar, mas que logo em seguida vi que também tinha um papel – sumiu de cena, permitindo que não só seus braços, cabeça e olhar dançassem, mas também o seu corpo todo. E, é claro, entrou em cena um guitarrista (Doca).

O que aconteceu a partir de então foi algo arrebatador. Versões rockn’roll, fundindo-se com uma levada funk, de dois clássicos de Caetano e Chico Buarque: “Vaca profana” e “Deus lhe pague”. Teve também, nesse enlevo de massa sonora extremamente dançante (não sei por que ninguém da plateia se dispôs a tal), um Lenine e, em total coerência com a negritude disso tudo, uma leitura aprimorada de “Carne”, da dupla Marcelo Yuka e Seu Jorge – que cheguei a confundir com algo do Jorge Benjor e que Vasconcelos teve a genialidade de misturar a um trecho do musical Hair, da década de setenta –, tornada clássica pela voz de Elza Soares. Puro delírio que permitiu entrever um brilho para além dos óculos vermelhos.

O domínio da música popular brasileira – uma sigla já gasta e pouco aceita por músicos contemporâneos –, ora presente nas “pessoas” do samba e da bossa nova (talvez seus mais dignos portais), trabalho pra uma vida inteira, parece ter permitido a Isabella Paz o entendimento de que esse é uma corrente sem fim, em que novos elementos, como na vida, sempre podem entrar, permitindo uma ampla e saudável renovação.

Translate »